CONTO: 'Lagartas congeladas vão para o céu?', de Manuela Aguiar

by - maio 10, 2023

 

Imagem por Manuela Aguiar

Lagartas congeladas vão para o céu?

Um tempo depois da sua partida, — e eu não sei exatamente mensurar quanto depois, e por isso o uso dessa conjunção tão abstrata, já que tudo após o fim da sua existência ficou um pouco inebriado — resolvi parar de adiar aquele momento penoso que é remexer no passado. Abri-me à ação de abrir suas caixas. Aquelas que continham toda a sua vida, empacotada, reduzida. Lembrando-me, mordazmente, que somos seres finitos e ínfimos. Encontrei, bem lá no fundo, um livro escolar de 1982. Era algo sobre escrita criativa, e a ideia de poder resgatar qualquer resquício desconhecido da sua existência me empolgou de tal maneira, que eu mal podia respirar. Prendi o fôlego, involuntariamente, enquanto folheava aquelas páginas amareladas pelo tempo. Demorei alguns minutos para achar, creio que o medo deixara minha mente turva. Medo de não encontrar você lá, pai. Qualquer palavra, qualquer pensamento seu, por menor que fosse, seria o suficiente para mim; e então eu o encontrei. Foi como se eu descobrisse algo que ninguém mais sabia. Era o nosso segredo. Deixado pelo seu eu de nove anos, sem nem imaginar o destino. O texto era assim:

    A Lagarta

    Eu gosto de bichos e sempre me interessei por insetos.
    Quando vou passear, na volta sempre trago um inseto para pesquisar em casa: quero saber quantas patas tem, se possui antenas, ventosas e etc.
    Esse ano estou feliz estudando os bichos com a tia de Ciências.
    Ela está ensinando como as lagartas se comportam.
    Então eu peguei uma lagarta no vaso de planta de mamãe.
   Coloquei o bicho dentro de um vidro, tampei com um plástico furadinho e joguei lá algumas folhas para ela se alimentar. No dia seguinte vi que ela tinha devorado tudo.
    Então tive que colocar mais folhas. Ela comeu rápido para cachorro!
    Depois achei que ela estava sofrendo ali presa. Levei o vidro para dentro da geladeira. Então ela morreu logo, toda durinha!

Talvez, para um outro alguém, a narrativa de uma criança não importasse tanto assim, mas para mim, significou a possibilidade de me transmutar para aquele momento. Para a casa da vovó e suas plantas, que ela regava religiosamente, todos os dias, enquanto cantarolava alguma canção antiga. Significou conhecer mais você. Ah, pai, há tantas coisas que eu ainda gostaria de saber sobre você. Tantas coisas que ainda serei e você não saberá. Conheci você já pronto, se é que adultos podem ser considerados seres finalizados. Mas, pra mim, você era. Na minha consciência de filha, você já sabia todas as respostas, já tinha todas as soluções. Foi bom encontrar uma versão sua que não havia experienciado a vida integralmente. De alguma forma me senti mais crescida. Se aquela criança foi, um dia, você. Então eu também poderia ser, hoje, pelo menos um pouco do que você foi. Isso faz sentido? Não sei, mas me conforta.
À sua maneira ingênua, você havia encontrado uma espécie de redenção para aquela lagarta. Será que haveria, igualmente, encontrado a sua?


                                               Manuela Aguiar

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