CONTO: 'Agora você é da família', de Giselle Gaspar

by - fevereiro 12, 2021

 

Arte por Enzo Lopes Grimaldi


Agora você é da família



    Era verão nos meados de 2005, tinha meus seis anos. Mais precisamente, era domingo, e como um bom domingo no interior da Zona Oeste do Rio de Janeiro, era dia de levantar cedo e pular na cama dos meus pais. Era dia de praia! Dia de acordar meus pais às sete da matina como se aquele fosse o último dia de nossas vidas e precisássemos aproveitar ao máximo.

    “Vamos, pai, acorda! É dia de praia! Vamos, mãe, é dia de comer na praia!”

   Havia um restaurante que eu sempre amei, ficava no alto da praia e as mesas direcionavam-se para uma vista incrível do mar. Era possível ter o prazer da alimentação e o prazer do som das ondas batendo nas pedras e das gotículas de água salgada vindo lentamente em nossos rostos.

    Vinda de família humilde, íamos lá em ocasiões especiais. Havia saído o resultado da faculdade, minha irmã mais velha passou em primeiro lugar; eu sabia que seria dia de praia. Nos preparamos e fomos. Típico passeio familiar, onde todos se amontoam em um carrinho velho e vão. Chegamos e pedimos o de sempre: peixe na brasa, camarão, arroz e salada. Essa comida tinha um gosto especial justamente por SER especial. Era um ritual alimentício que carregava em si uma questão psicológica e afetiva.

    O gosto remete à memória. Segundo Aristóteles, o conhecimento começa quando captamos, via sentido, essas informações e as transmitimos para a memória, fantasia ou imaginação, agrupando-as de acordo com sua semelhança de imagens. É a partir do real que a inteligência exercida e organizada dá forma ao gosto, construindo raciocínios e sensações.

    “Esse lugar é legal.”, disse minha irmã sem a empolgação que eu esperava.

    “Legal? Ele é in-crí-vel! Quando eu crescer, eu irei vir todo dia aqui. Vou me matar de estudar até ser muito rica e comprar esse lugar!”. 
Claro, eu tinha uma empolgação típica e utópica de toda criança. Comemos, mas acima de tudo, celebramos. Talvez esse lugar no alto da praia tenha mais significado que a própria ceia natalina, pois era um lugar só nosso.

    Nosso: pronome possessivo. Posse em relação à troca, em relação ao convívio, em relação ao contato. Era nosso, nosso lugar, nossa comida. Existem vários sabores que nos fazem lembrar momentos importantes da nossa vida. Todos nós fazemos alguma relação entre um alimento e um momento vivencial ou com uma data especifica do ano.

    A memória é uma disposição passiva da perceptividade da alma. É uma faculdade humana por direito próprio. Existe algo melhor e mais prazeroso para ativar esse mecanismo do que a comida? Do que o paladar? Tudo em nós está interligado, tudo foi pensado minuciosamente para se completar... A perfeição e a complexidade estão nas entrelinhas.

    Passamos o dia nesse restaurante e, como de costume, pedimos a famosa quentinha. Não por falta de comida em casa, mas porque queríamos levar um pouco dessa experiência que pouco fazíamos para o nosso lar. Porém, é claro, era apenas uma tentativa. Faltava o bater das ondas ressoando em nossos ouvidos, faltava os talheres, os pratos, as toalhas de mesa, até mesmo os cachorrinhos que nos rondavam em busca de algo para sobreviver. Era uma tentativa de réplica, mas nada se comparava ao almoço na praia.

    Os anos se passaram, era 2016. Início de namoro, obviamente teria todo o ritual de conhecer os pais. Ele veio, eu já tinha em mente o lugar exato para irmos. Já havia combinado com minha mãe; meu pai ainda estava meio triste por sua caçula estar namorando.

    “Sei o lugar perfeito pra te levar, você vai amar! Minhas melhores lembranças são de lá, quero compartilhar todas e as próximas com você, então você precisa conhecer o meu lugar.”. E fomos todos juntos como de costume, mas agora com uma peça a mais. Chegamos, estava com fila, irmã mais velha reclamando. Nada importava, era um dia feliz, era o meu dia feliz que passaria a ser nosso de novo.

    Enquanto estávamos na fila, fiquei observando as outras mesas. Cada uma possuía sua particularidade: um casal apaixonado trocando comidas e carícias, uma mãe tentando acalmar seu filho pequeno com a ajuda da sobremesa, um cachorro atacando as batatas fritas de seu dono, um casal em meio a brigas pela última peça de camarão... Tantas coisas ao nosso redor que, ao mesmo tempo em que estamos praticando a celebração do ato de comer, essas coisas ficam paralisadas nos segundos e no espaço.

    Como cresci, pude perceber cada pequeno detalhe acerca dos sentidos que antes não possuía. Percebia o aroma das pequenas flores no centro da mesa, o frescor dos frutos do mar e seus temperos, ouvir e sentir os pequenos cubos de alho dourando no mais limpo azeite para receber o mais branco arroz, que logo se camuflaria com a imersão do saboroso e cultural feijão. Ah! Tantas coisas! Tantas coisas que 
se misturavam e se entrelaçavam em minha mente após ter a boca como ponto de partida, imagens delirantes de cores, sabores, amores... Experiências.
    
    Nossa mesa chegou e agora era também a vez dele, soava como uma primeira vez propriamente dita: sensações, prazeres, amores, toques, mordidas. Comemos, fiquei na expectativa e elas foram respondidas. Foi amor à primeira vista: nosso e com a comida da praia.

    Após poder proporcionar essas experiências, pude perceber que o prazer está também em tornar possível o prazer do outro e que isso está inteiramente ligado a questão do paladar, pois as comidas são o prazer em essência e as mesmas têm o dom de tornar prazeroso. A experimentação da virtude pode dar-se pelo prazer. Para se ter uma vida feliz, os homens escolhem o que lhes é agradável e evitam a dor. O prazer é parte da natureza humana.

    Os sabores estão inteiramente ligados as emoções. Ao comer – e vivenciar essa comida – criamos uma forma de fugir daquilo que causa incômodo internamente. A alimentação é uma grande aliada para alcançar o equilíbrio “corpo e mente saudáveis” do qual tanto falavam os antigos gregos. Não podemos evitar ou esquecer esse tão importante ritual, não devemos deixar os pequenos prazeres diários serem passageiros.

    Eu não deixava ser. Eu aproveitava ao máximo aqueles momentos, pois sabia que eram raros. Aproveite.

    Foi um dia lindo, especial, cultural e marcante. Voltamos para casa, nada como o nosso lar.

    “Quando tivermos um filho, lá será o primeiro passeio dele. Obrigada por me fazer sentir.”, disse ele. Por fim, estava toda a família reunida para a janta, pois o restaurante da praia pode ser esplêndido, mas nada como a comida de casa, a comida de mãe, a comida de colo. Era hora de nos despedirmos, então minha mãe lhe disse:

    “A mesa é uma metáfora da vida. Agora você é da família.”



                                               Giselle Gaspar

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