ANÁLISE: 'Não sei quantas almas tenho', de Fernando Pessoa

by - junho 23, 2021

 

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Fernando Pessoa
Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

 

    A minha escolha por esse poema, deve-se ao fato de ao lê lo me reconhecer nessa inquietação que aparentemente está sendo manifestada. Já é de conhecimento público que Fernando Pessoa possuí muitos heterônimos, e que o poema faz referência a esses tantos “eus” e seus desdobramentos. Mas será que é tão simples assim? – me pergunto.
    
    O poema em seu título “Não sei quantas almas tenho” já imprime uma reflexão independente do advérbio de negação, afirmando seu desconhecimento sobre algo interior. Seria possível um ser ter mais de uma alma? E o poeta refere-se mesmo aos seus heterônimos? Diria um grande talvez, pois ao fazer afirmativas sobre uma obra que talvez nem o próprio autor concebesse, seria imprimir algo falho; e a própria designação de conceito para a palavra alma é diverso: a palavra advém do Latim “animu”, significa o que anima, e do grego deriva de “anemos”, ou seja, ar, sopro.

    Na primeira estrofe temos uma variação temporal sobre a mudança o que causa estranhamento, “Nunca me vi nem achei. De tanto ser, só tenho alma.” atribuindo subjetividade a interpretação, pois a noção do ser está sempre ligada a razão e a alma a emoção (coração), pensando no “ser” como o físico, corpo, e que pelo curso da natureza vamos envelhecendo, estamos sempre inacabados, do ponto de vista biológico, ou até mesmo pela “maturidade” ou não que o tempo traz, não somos, nós estamos, um eterno processo de “reconstrução”. No trecho “Quem tem alma não tem calma”, percebe-se uma angústia, ânsia, percepção plural das essências que perpassam o nosso pensar, a razão que não se acha, como quem perde a paz. E finaliza trazendo a reflexão sobre os atos de ver e enxergar, parafraseando Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” (epígrafe do livro Ensaio sobre a cegueira”), que entende a cegueira dos olhos como uma metáfora para a nossa real cegueira da mente, continuando a elaborar esta ideia na primeira linha da segunda estrofe.

    Agora, na segunda estrofe encontramos os pronomes “eles” e “eu”, dando a ideia de uma multiplicação, mas que na verdade culmina em um desdobramento de solidão. Apresenta um “eu” espectador, como um reflexo no espelho, onde apenas existe uma projeção imagética do que e quem se é, como que um estranhamento a si mesmo. À medida que os desafios são expostos, o eu lírico enfrenta-os de forma dissimulada pelas suas personagens literárias, e por isso diz que os sonhos e desejos são "do que nasce" e não dele. “Diverso, móbil e só”, atribuindo a si três características, parte de uma multiplicidade, ser inconstante e constata que está sozinho, possivelmente sem salvação, e aí afirma: “Não sei sentir-me onde estou”, imprimindo a nítida sensação de não pertencimento, deixa de sentir, um algo ou alguém que lhe é desconhecido. Eduardo Lourenço aponta: “Recusar a verdade dos outros ou o espírito com que eles a vivem não é o mesmo que encontrar a sua” (p.186), ou seja, a única forma de manter-se em liberdade, (a das almas), entendendo-a como permanência, seria através da heterodoxia.

    O desfecho, que vem com a terceira estrofe, “Por isso, alheio, vou lendo/ Como páginas, meu ser” denota a ideia de que sua vida se confunde com a sua obra, vida essa desmedida racionalizada, restringida a linguagem escrita e ao mesmo tempo transferida as personagens literárias. “O que segue não prevendo, O que passou a esquecer” um ser sem passado nem futuro, “Noto à margem do que li/ O que julguei que senti” desconhece a si próprio e também o seu passado, e concluindo “Releio e digo: “Fui eu?” / Deus sabe, porque o escreveu”, o eu lírico afirma que alguém superior comanda a sua vida, um ser demiúrgico. Todo o poema flui como uma sucessão de insights provocados pelo verso anterior, assim como no Livro do Desassossego, obra composta de insights eminentes oriundos da mente inquieta do semi-heterônimo Bernardo Soares, narrador principal, “Choro sobre minhas páginas imperfeitas” (fragmento 64, p.97).

 

                                               Aline Sohn

 

BIBLIOGRAFIA:

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). - 48.


PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. – 2ª ed. – Jandira, SP: Princips, 2019.


SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995.


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