PROSA POÉTICA: 'andar de ônibus à noite em um metrópole qualquer', de Maria Beatriz Hermano

by - agosto 19, 2022

 

Imagem por Maria Beatriz Hermano

andar de ônibus à noite em uma metrópole qualquer

Eu senti o tempo pousado no meu colo à medida que o ônibus rasgava a cidade inteira. Era mais tarde e mais frio e mais rápido do que o necessário. Eu entendi ali que sempre carregaria esse sentimento comigo, onde quer que eu fosse: como se as horas me pedissem pra que eu passasse por elas duas vezes.

Eu sempre carregaria um olhar mais pesado comigo dentro daquele ônibus, o olhar de quem assimila em dobro sem compreender metade. E todos os sons seriam agudos, toda vida seria densa, e os olhos dos passageiros eram de vidro. Tudo que eu sei sobre mim se esfarela quando eu externalizo, mas se você pudesse ao menos acolher meus fragmentos os veria frescos na sua mão, cortantes, e pulando como peixes na areia querendo se juntar ao cardume que flamula debaixo d’água. Tão inútil.

Angústia urbana é sempre a mais azeda de todas. Os pedaços de vidro supersônico no chão, impelindo os desejos a dormirem por baixo do sangue quente. Existem olhos mecânicos por todas as frestas e me encolho contra o banco enquanto aumento o volume da música. Essa tristeza faz-me sentir viva, as fibras tocam o meu corpo, elétrica, encostando a membrana fria do mundo. Por isso o coração quente se afunda no peito, limitado, acuado pela imensidão das estrelas.

Meus olhos ficaram mais mortos a partir disso: letárgicos como janelas de uma sala vazia. Talvez o peso de mares transatlânticos tenha feito minha presença ser maresíaca, então eu entendo se você for embora. Trago dentro de mim coisas densas e angustiantes. É muito difícil. E meu corpo fica pesado pelo sal, e bambo pelo molejar oceânico que eu involuntariamente absorvi, desde a pele até os batimentos cardíacos. Seria tudo isso, essa água morna internalizada, que me deixa tão pesada e repulsiva? Que faz todos irem embora? Que torna a minha voz uma voz adormecida dentro de um aquário? Que torna os olhos dos passageiros tão irremediavelmente frios? Todos olhares são tão afiados assim ou são meus olhos que são vermelhos e frágeis e sem vida? Eu e o mercúrio quente no meu colo, fascinante e perigoso, dentro daquele ônibus.

Eu gosto de sentir a melancolia pesada, que dói fisicamente, essa que sentimos andando de ônibus tarde da noite numa metrópole, voltando do trabalho ou da faculdade. A melancolia subjetiva de cada um se misturando numa massa cinzenta e coletiva de melancolia. Eu sei que é mentira, mas às vezes sinto que essa massa abstrata e triste é a única coisa que tenho em comum com as outras pessoas. Sinto uma pontada no meu coração, e naquele momento no ônibus, cada um na sua bolha impenetrável, compartilhamos a mesma solidão, incomunicável por natureza, como fragmentos de uma mesma estrela presos em corpos inospitamente paralelos. É um momento muito rápido de clarividência.

Volto então a olhar a janela.

Como são frias e duras as cidades à noite. Como são o contrário de tudo de conforto e delicadeza. Como nos esbarramos com aspereza ao sair do ônibus para a familiaridade de nossas casas, evitando nos sedimentar nos toques, despejando a solidão na cama, deixando-a escorrer pelo ralo, disfarçando-a nas atividades cotidianas, protegendo-a em nosso silêncio, para que a vistamos na manhã seguinte, limpa e amarrotada, — mas sob medida.

Como eu e nós somos a mesma pessoa, e ainda assim não a vejo e não sou vista.

                                        Maria Beatriz Hermano

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