PROSA POÉTICA: 'ad finitum', de Maria Beatriz Hermano

by - agosto 17, 2022

 

Imagem por Maria Beatriz Hermano

ad finitum.

tudo era muito macio tipo tecido e linho branco. limpo. e uma luz entrava dentro dos olhos refrescando as arestas... transpassando os fios, despertando a água, crestando as árvores, refratando as pupilas.

conseguia alcançar esses níveis precisamente quando fechava os olhos muito forte espremendo as pálpebras, e o pó branco que saia delas era de uma textura parecida com o pó que sai das asas das borboletas.

os sonhos estavam sempre do lado de dentro: borbulhando tenuemente como pequenos náufragos, numa espécie de êxtase; e muito teimosos, meio egoístas, exigentes como bebês recém-nascidos: vontade pura, instinto puro, e culpa nenhuma.

eu esmagava acidentalmente a borboleta no meu crânio toda vez. tão violenta
& ali perdia a eternidade, toda vez que pensava em capturá-la, ou antes: toda vez que pensava. estilhaçada nas minhas mãos em estágio embrionário e sangrento. então eu corria pra escrevê-la, e a cada palavra ela perdia sua força:

a natureza de tudo se resumia em água gélida de cachoeira, órgãos vitais teimosos e promessas vazias que apesar de tudo faziam nossos pés caminharem mais um passo. (como me fizeram caminhar até a espuma das ondas, me afastar posteriormente, derreter com meu corpo no sol escaldante & evolar um mantra que entra na carne tipo droga ilícita no carnaval do rio.) deixava que o sol aquecesse nossas peles até queimar, deixava me sujar com a areia, com o sal,
e a vida me cobrir com esse choque térmico suave, brando, congelante. sempre de dentro pra fora, sempre rachando a pele como as veias racham um coração de pedras, por dentro; a vida sendo essa coisa ridícula que continua apesar dos nossos protestos: saindo por todos os poros abertos. abundante e ofuscante, doendo como lâmina. encarava tanto o sol que tudo se inundara de branco ofuscado. gostava do efeito de me ver perdida na imensidão do mundo, sem tentar formulá-lo.

é nessa tragédia que nos movemos, pela areia movediça que esmorece os sonhos. por estarmos nos recompondo a cada segundo e a cada milésimo de segundo, daí que sai a faísca vacilante. da borda do precipício. pelo mundo ser infinito e não podermos tocá-lo. das bordas das caixas torácicas tudo se escapa: córregos, metáforas, cacofonias e ressonâncias.

a própria vida escapa como areia entre dedos inertes.
presta toda atenção:
que na pausa de ar que entrecorta os grãos de areia em queda é que tu respira. Eu, e tu e eles. respiram.

e os sonhos

estão sempre do lado de dentro. meio ocos e soturnos


mergulhando tenuemente como pequenos afogados.
teimosos até o último segundo. e do lado de dentro. vindos de fora.                      
ad finitum.



                                        Maria Beatriz Hermano

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