Análise de 'Adeus', de Eugénio de Andrade

by - fevereiro 19, 2021

 

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Adeus
Eugénio de Andrade
 
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
 
 
 
 
    O poema Adeus de Eugénio de Andrade faz parte da obra Os Amantes sem Dinheiro e retrata em tristes linhas o fim de um relacionamento cansado. Trata-se de uma carta de despedida, reforçada pelo título e pela última palavra do poema: adeus. A anáfora do verbo gastar na primeira estrofe relaciona o desgaste do relacionamento com o de elementos atrelados ao casal, trazendo para o meio físico os sentimentos negativos que eles tinham um para com o outro. Tudo foi gasto, com exceção de uma coisa: o silêncio – primordial para evitar-se atritos em algumas circunstâncias.
    Ocorre em alguns poemas o tom melancólico referente à passagem do tempo: outono, inverno, tarde e noite e a chegada da velhice e da morte. Nesta obra, Andrade somatiza a melancolia da passagem de tempo com o declínio do relacionamento, como a sequência: “Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!”, “Mas isso era no tempo dos segredos,” “Hoje são apenas os meus olhos.” e “O passado é inútil como um trapo.”, percebe-se um recurso gradativo, onde justamente a última palavra presente na obra é seu clímax: o adeus.
    Há no decorrer da obra elementos que fazem parte do mesmo campo semântico – peixes verdes, aquário – mas é no terceiro verso da última estrofe que Eugénio utiliza um de seus principais recursos em suas obras: o uso de elementos da natureza metaforizados. Nesta linha de pensamento, o espaço e a paisagem compostos pelos elementos naturais corporificam o homem integrado à natureza espacial, personificado na linguagem poética.


                                        César Augusto Pereira

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