CONTO: 'A tristeza de Ceres', de Mylena Machado

by - fevereiro 17, 2021

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A tristeza de Ceres


    À noite, um estranho pesadelo, no qual eu mesma me esforçava para chegar no lugar em que iriam me prender. Acordei estranhamente ansiosa. Deixara as cortinas abertas e amanheci quente pela luz que atravessava o vidro da pequena e única janela do quarto. Não sabia que horas eram, nem recordava de escutar o toque insuportável do despertador, mas o gato arranhava a porta com a energia de um guerrilheiro, portanto ainda estava cedo.

    Desconfortável e ainda cansada, tateei os lençóis cor de urucum da cama de solteiro em busca do celular: ainda eram sete horas. Levantei-me preguiçosamente e enchi os pulmões com o ar quente do fim do verão. O aglomerado de casas e prédios se estendia até onde minha visão alcançava. As ruas seguiam como labirintos, algumas poucas almas caminhando sabe-se lá para onde.
    
    Abri a porta e Plutão veio logo se esfregar em minhas pernas, um grande gato de lustrosos pelos negros e olhos cor de ouro. Eu o achava o animal mais lindo do mundo, mas qual dono não acha? Impaciente, o bichano começou a miar alto. O segurei em meus braços e dirigi-me à cozinha onde enchi sua tigela. Acariciei sua nuca enquanto sentia seu ronronar, os olhos brilhando enquanto mastigava a comida com vontade. 
    
    Aos poucos, o pesadelo que tive passou de uma imagem vívida a uma sensação distante e incômoda. Por mais que eu tentasse não conseguia lembrar-me de mais nada além de uma árdua caminhada para o local de minha prisão. O que eu havia feito? Eu realmente havia feito algo? Por que tanto esforço em me isolar propositalmente? 

    As palavras perderam o sentido.

    Pus-me a aguar as inúmeras plantas da cozinha, quase secas, enquanto saboreava os restos de uma romã que guardara na geladeira. Achei os móveis insatisfatoriamente tediosos, marrons demais, inertes demais. O apartamento inteiro pareceu esfarelar-se por um segundo, talvez a eu do sonho estivesse certa. 
    Prensei um pão na frigideira e passei o café, um cheiro terroso familiar que me regressava a infância na casa da família. Aquilo sim era casa. Pequena, mas de terreno grande. Muitos cachorros, pássaros também. Faziam ninhos nos pés de acerola e voltavam meses depois. Quando cortaram as árvores passaram a procurar espaços nas vigas da varanda. Plantávamos de tudo, mandioca, milho, cana de açúcar, alface, tomates cereja...

    Uma sensação desagradável invadiu meu estômago enquanto sentava- me no sofá púrpura para me atualizar nas notícias. Os vizinhos começaram com sua gritaria habitual, cada dia mais cedo, cada noite mais tarde. A mulher esgoelava-se com o filho mais velho, o marido, os cachorros. Reclamava das demoras do esposo após o trabalho, do desleixo do adolescente com o quarto, do bebê chorando. Até de Plutão ela regozijava-se em reclamar, um gato tão amoroso que desfilava pelas
muretas da sacada em silêncio. Ela o chamava de praga, demônio e outros nomes.

    “Gato preto dá azar, é coisa de bruxa!”.

    Plutão não se importava, encarava-a toda vez com deboche, às vezes soltava um miado em resposta. Talvez gostasse de ser chamado de gato de bruxa. Mas que tipo de feiticeira mora num apartamento? O bichano pulou de repente no sofá e aninhou-se numa das almofadas, feliz e de barriga cheia. Eu sorri satisfeita ainda que incomodada com a sensação que se espalhava pelo meu corpo.

    O calor começou a se alastrar pela casa, invadindo a sala com violência, aquecendo meu corpo e deixando-me ansiosa mais uma vez. Abri todas as janelas, mas ainda me sentia sufocada. Eu já não cabia mais naquele apartamento.

    Encarei as plantas que secavam nos vasos, um tímido casulo escondia-se entre as folhagens, Plutão ainda adormecido no sofá. Corri para o computador deixando a louça na pia. O outono próximo sempre me deixava pensativa. É preciso ter um lugar, nem que seja pelo gosto de ir embora.



                                               Mylena Machado

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