Análise de 'Começo a conhecer-me...', de Álvaro de Campos
Imagem por: Manoela Villa Verde |
Considerações sobre “Começo a conhecer-me. Não existo”, de Álvaro de Campos.
Começo a conhecer-me. Não existo.Sou o intervalo entre o que desejo ser e o que os outros me fizeram,ou metade desse intervalo, porque também há vida...Sou isso, enfim...Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.É um universo barato.
Mergulhando nos invisíveis do poema, tem-se uma gradação ternária que marca um salto no vazio. O poeta utiliza os verbos: começo/ conhecer/ não existo que já abrem o poema sinalizando um grande paradoxo. A própria etimologia do verbo “conhecer” explica: “trazer pra perto o que está afastado”. O poeta trata de conhecer a si mesmo e se dá conta de que não existe.
Há também a repetição do verbo ser: sou/ ser/ sou (o que não deixa de ser também outro paradoxo: sou x não existo). Essa repetição demonstra uma dualidade: existem dois seres - o que ele é e o que os outros fizeram dele. O poeta reduz o próprio intervalo: Sou o intervalo entre o que desejo ser e o que os outros me fizeram, ou metade desse intervalo... Sou isso, enfim...
E cada vez mais ele vai reduzindo o espaço desse conhecimento existencial e chega a reduzir a um quarto só, que é polissêmico (aquele mesmo só do Velho do Restelo, de Camões, só de sozinho ou só de somente), a redução ao essencial. Isso se torna visível quando identificamos que os verbos também deixam de ser de ligação e passam a indicar ações: apague/ feche/ deixe/ fique. E uma dessas ações conduz a ficar só no quarto.
Assim, esse sossego num universo barato de Álvaro de Campos é extremamente irônico, uma vez que o poeta é heterônimo de Fernando Pessoa, autor do Livro do Desassossego (na pele do semi-heterônimo Bernardo Soares) e não se pode falar em sossego, em calma, em tranquilidade, “porque tudo é o mesmo e outro, esse o sortilégio” (Gonda, 2021).
Manoela Villa Verde
5 comentários
Parabéns pelas considerações e por resgatar o íntimo desejo de conhecer e de se conhecer que habita o mundo dos poetas e de toda a 'gente' que há no mundo. Grande abraço à Manoela Villa Verde. Parabéns às pessoas que idealizaram e que estão mantendo esse espaço. Atenciosamente, Erivelto Reis.
ResponderExcluirAgradeço demais seu comentário, especialmente porque me faz querer continuar conhecendo a Literatura e a Língua Portuguesa cada vez mais!
ResponderExcluirSeja bem-vindo ao blog!
Que lindo! Tanto afeto em belas palavras!
ResponderExcluirObrigada! Foi feito com muito carinho!
ExcluirÓtima escolha do poema e excelente análise!
ResponderExcluirLi recentemente uma matéria da BBC "Como ler romances pode ser uma importante ferramenta de autoanálise" e o verso "Sou o intervalo entre o que desejo ser e o que os outros me fizeram" nunca fez tanto sentido! Parabéns <3