Análise de 'A cadeira amarela de Van Gogh', de Jorge de Sena

by - março 10, 2021

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“A CADEIRA AMARELA” DE VAN GOGH, de Jorge de Sena

No chão de tijoleira uma cadeira rústica,
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.

Depois das deusas, dos coelhos mortos,
e das batalhas, príncipes, florestas,
flores em jarras, rios deslizantes,
sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,
faltava esta humildade, a palha de um assento,
em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,
ou foi pousado expressamente como sinal de que
o pouco já contenta quem deseja tudo.

Não é no entanto uma cadeira aquilo
que era mobília pobre de um vazio quarto
onde a loucura foi piedade em excesso
por conta dos humanos que lá fora passam,
lá fora riem, mas de orelhas que ouçam
não querem mesmo numa salva rica
um lóbulo cortado, palpitante ainda,
banhado em algum sangue, o «quantum satis»
de lealdade, amor, dedicação, angústia,
inquietação, vigílias pensativas,
e sobretudo penetrante olhar
da solidão embriagadora e pura.

Não é, não foi, nem mais será cadeira:
Apenas o retrato concentrado e claro
de ter lá estado e de ter lá sido quem
a conheceu de olhá-la, como de assentar-se
no quarto exíguo que é só cor sem luz
e um caixote ao canto, onde assinou Vincent.

Um nome próprio, um cachimbo, uma fechada porta,
um chão que se esgueira debaixo dos pés
de quem fita a cadeira num exíguo espaço,
uma cadeira humilde a ser essa humildade
que lhe rói de dentro o dentro que não há
senão no nome próprio em que as crianças têm
uma fé sem limites por que vão crescendo
à beira da loucura. Há quem assine,
a um canto, num caixote, o seu nome de corvo.
E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?
Que cadeira, mesmo não-cadeira, é humildade?
Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,
são só cadeiras o que fica, e um modesto vício
pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?




    O poema de Jorge de Sena “A cadeira amarela” de Van Gogh dialoga com a pintura “A cadeira de Van Gogh com cachimbo”. Trata-se de um poema de característica ecfrástica, termo que, em resumo, podemos associar a uma poética interartística onde arte visual e poesia se encontram. Não por acaso o poema encontra-se no livro Metamorfoses. O processo de deslocamento da pintura ao poema passa por alterações, mudanças. O título do quadro dado pelo pintor é alterado pelo poeta, mostrando que já não é mais uma pintura, mas ultrapassou sua linguagem visual para o campo linguístico, como esperado numa metamorfose.
         O poema inicia-se com a descrição do quadro. Ele não pinta apenas a obra através das palavras, mas parece traduzir o processo de composição do quadro, transformando os movimentos do pintor nos do poeta por meio do campo semântico com repetições de palavras como cadeira / tabaco / porta / assinatura.
    A segunda estrofe viaja pela obra do pintor. Ao longo do poema também se nota que há um movimento de transformação onde certezas dão lugar às dúvidas. As repetições tornam o quadro poesia: cadeira / nome próprio / assinatura (concretude) transformam-se em dúvidas. Ao final, uma reflexão: a cadeira que já não é mais cadeira “não é, não foi, nem mais será cadeira”, “há nomes que resistam?”.
    Através da expressão «quantum satis» o poema guarda em si a redução ao essencial. A humildade representada na pintura hospeda através não só das repetições da palavra “humildade”, mas também na descrição rústica da cena. Num processo de metamorfose, já citado, a pintura ganha um novo sentido. Sai de seu campo visual para um novo campo: o poético. Traz um novo olhar, transcende a própria linguagem e entendimento, tornando-se um meio de reflexão sobre si própria. Como diz o poeta: “E há cantos em pintura?” Há limites?


                                               Mylena Machado

 

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