Análise de 'Brincando com os dentes do tubarão', de Matilde Campilho

by - abril 12, 2021

 

Imagem do Google Images


Brincando com os dentes do tubarão

You are the sunshine
of my life
e conversar contigo de manhã
é tão bom
tens o poder do muesli e da
laranja
ou de qualquer fruta de época
for all that matters

Acompanhar teu percurso
natural
é muito bom
falar contigo
sobre tipos de alimentos
também

Neste começo d’hoje
tuas costas negavam
qualquer espécie de outono
Afinal
a ideia de estação
é só um tema ilusional
engendrado por humanos
que nunca puderam desenhar
tua coluna vertebral
a dedo nu

My dear bicho gente
veja lá se sua próxima visita
vem antes da edição fria
do Financial Times

(CAMPILHO, 2014)



    Ao bater o olho no poema “Brincando com os dentes do tubarão”, é fácil perceber que o tema gira em torno do amor do eu-lírico por alguém. Contudo, para que seja possível acessar os invisíveis do texto, é preciso saber que em Jóquei, livro de poemas do qual este faz parte, Matilde passeia por diferentes cidades do mundo, com destaque para Rio de Janeiro, Lisboa e Nova York, expandindo as linhas das fronteiras que permeiam suas vivências. Assim, a autora brinca com músicas e termos em inglês, como ao abrir o poema com a canção “You are the sunshine of my life”, de Stevie Wonder e, ainda na primeira estrofe, ao usar o termo “for all that matters”.

    Algumas palavras atentam para o fato de que trata-se de um poema que realça temporalidade, como “manhã”, “percurso”, “d’hoje”, “estação”. Na primeira estrofe, ao falar do “poder do muesli” (uma mistura de flocos de cereais e de frutos secos), Matilde inicia o tempo do poema no período matinal. Entretanto, para o eu-lírico, o poder que a pessoa amada exerce ultrapassa o conceito de tempo, ele existe em qualquer época. Nas terceira e quarta estrofes, a lisboeta continua a convidar o leitor a, mesmo que inconscientemente, viajar no tempo com ela: “tuas costas negavam/ qualquer espécie de outono” e em seguida enfatiza que as estações são “um tema ilusional” criado por pessoas que, diferentemente dela, não “desenharam” - com mãos - essas costas que, para ela, foram capaz de subverter a ideia de tempo; o que viria, possivelmente, de um desejo de que esse tempo - de fato - pare de existir. Ao mesmo tempo, ao pedir para a pessoa amada ver lá “/se sua próxima visita/ vem antes da edição fria/ do Financial Times./”, a autora passa uma ideia de urgência. O Financial Times é um jornal diário da Europa e uma “edição fria” é aquela que não precisa ser publicada imediatamente, o que leva a crer que o eu-lírico está comparando esse não imediatismo ao desejo dela de rever o/a “bicho gente”, antes mesmo de amanhã.

    O poema, além de amor, é sobre encantamento; o eu-lírico está encantado por esta figura pela qual se apaixonou. A última estrofe passa também uma percepção de efemeridade quanto a esses encontros e, ao se referir à pessoa como “bicho gente”, é possível que a autora esteja falando sobre o “tubarão” do título, sobre algo que é perigoso, porque pode machucar, mas que também é bom, porque é uma “brincadeira”.


                                 Ana Gabriela da Fonseca Mano

Você pode gostar também

0 comentários