'Quando a escola volta?', por Daniel Andrade

by - agosto 09, 2021

 

Imagem enviada por Daniel Andrade

Quando a Escola volta? 

Oswaldo Aranha. Um político que era amigo de Getúlio Vargas. Diplomata e Advogado. Presidiu a II Assembleia Geral da ONU e auxiliou na criação e reconhecimento internacional do Estado de Israel. Uma figura importantíssima para o Brasil e fora dele. Mas não é nessa pessoa que penso ao olhar a fachada da Escola Municipal Oswaldo Aranha, em Rocha Miranda, a também conhecida como minha casa. 

Pensei nisso enquanto esperava minha mãe no portão, para irmos ao mercado ainda de manhã. Ela demorou um pouquinho devido a uma conversa com a diretora da escola, conversavam sobre a possível volta às aulas, que talvez seja anunciada hoje pelo secretário de educação. 

Fomos ao mercado, e pudemos sentir o peso da pandemia. Não digo apenas do cuidado redobrado que temos que tomar, como evitar encostar nas coisas, passar álcool em gel e principalmente usar máscara. Esse não é o maior peso que sentimos... Um dos maiores pesos que sentimos é o da bolsa quase vazia. O preço da comida e itens que compramos no mercado é inversamente proporcional ao peso do que levamos de volta para casa. Maior o preço menor o peso. O maior peso é o da falta

Ainda no mercado, nos deparamos numa situação daquele tipo que não sabemos bem como reagir. Encontramos alguns alunos da escola, que com doce pureza quebram as regras de distanciamento social. Bem, não conseguimos fugir do abraço, dos sorrisos e nem das intermináveis perguntas: “Tia, quando que a escola volta?”. 

Quando que a escola volta? Uma pergunta considerada infantil, mas que carrega em si um significado ainda maior. As crianças sabem que a escola não foi a lugar nenhum. Elas sabem que o prédio continua lá, no mesmo endereço, com o mesmo CEP. A mesma escola, feita com janelas quadradas e azulejos azuis e amarelos, ainda permanece no mesmo lugar espacial. As crianças sabem disso, então porque elas perguntam quando que a escola voltará? 

Ainda no mercado eu fico pensando nisso. Elas não estão se referindo ao lugar, porque ele continua o mesmo. Talvez elas estejam se referindo a outra coisa... Bem, aí está algo para se pensar.  

Voltamos do mercado. Fui direto ao computador, já que estava na hora da aula. Minha mãe foi se arrumar para ir trabalhar. Um dos benefícios de se morar numa escola é que não é necessário se arrumar muito antes do tempo de sair. Ela se arruma e sai e imediatamente chega ao trabalho.

Na hora do almoço, resolvemos almoçar juntos. Eu, minha mãe a diretora.  

Nessa pandemia, nossos laços se aprofundaram muito. Passamos por diversas crises nesse tempo de isolamento.  E ao olhar para a vagem e a abóbora nos pratos nos recordamos do primeiro desafio que tivemos. 

O apodrecimento da comida estocada na despensa da cozinha da escola aconteceu silenciosamente. De início, as escolas fecharam apenas por 15 dias, e o tempo foi seguindo seu curso com nenhuma previsão de voltar “ao normal”. Com o passar do tempo, a banana amarela se torna marrom, e a abóbora laranja se torna azul e branca. Algo aconteceu e nem nos demos conta: o tempo passa, e a comida estraga. Foi uma correria para tentarmos salvar aqueles quilos de comida que estavam estocados e preparados para serem utilizados, e seriam usados nas próximas semanas se o “apocalipse” não tivesse acontecido.

O assunto segue para a limpeza da escola que seria feita nos dias seguintes. Limpariam as salas empoeiradas e o corredor do terceiro andar, que sofreu uma infiltração e fez uma parte do gesso cair e molhar o chão todo. Realmente muitas crises.  

Pensando nisso, me dei conta de algumas coisas. Eu parei de contar o tempo, mas o tempo não parou de avançar. 

Os corredores, que outrora eram abarrotados de crianças com camisas brancas e shorts azuis correndo por todos os lados, se tornaram frios e solitários. A escola deixou de ser um prédio de três andares no Rio de Janeiro e se tornou aqueles castelos medievais: com corredores cinza e pátios detentores de “ecos” sem fim. Os enfeites que enchem as paredes das salas de aula, antes coloridos e vivos, se tornaram desbotados e alguns caíram, abrindo espaço para a brancura da parede, cortinas de TNT se desfizeram e voaram livremente com vento pela escola, se espalhando com e como a poeira.

O tempo seguiu sua marcha, e ao almoçarmos nós três (eu, minha mãe e a diretora), percebemos que fomos as únicas testemunhas disso na escola, dessa marcha tirânica. Apenas nós que continuamos o duro trabalho de tentar manter a escola em pé nesse longo momento de espera. Mas estamos cansados, e só há uma pergunta em nossos corações... “Quando a escola volta?”. 

Dentro da escola nos perguntamos quando ela voltará. Ela voltará. 

Bem, ainda continuaremos a esperar. Pelo menos agora temos mais gente por aqui. Os garis voltaram, e os funcionários administrativos também. Todos estamos cuidando um dos outros e cada um de si, mas só agora.

Depois disso, me volto para o computador para a próxima aula online. A aula encerra, e vou ver como está a minha mãe, coloco minha máscara e atravesso a porta de casa, que dá na frente de um bebedouro interditado. Esse bebedouro está assim antes da pandemia, pelo menos.  Vou até a secretaria, onde minha mãe está. Ela na verdade é merendeira, mas houve um problema sério no braço direito com seu braço, teve até que fazer cirurgia. Por causa disso, ela foi readaptada, ou seja, cumprirá a carga horária com outra função, logo, trabalha na secretaria com serviços leves e administrativos.  

Ela está atendendo uma mãe de aluna desconhecida. Veio pedir transferência do colégio P.A. para a nossa escola. E essa não é a primeira família que tira seus filhos do P.A.. E não é porque o colégio não é bom, pelo contrário... O problema está em ele ser particular. Num período de falta, muitas família tiveram que se reorganizar   

Enquanto espero, vejo a menininha correndo os olhos pelo pátio, cheio de marcações e adesivos plásticos no chão. A eleição foi o período que mais vi gente nos últimos dois anos. Os mesários fizeram um ótimo trabalho naqueles dias turbulentos... Esse dia também deixou marcas no prédio, ainda há adesivos pela escola toda, e cartazes falando sobre segurança e distanciamento.  

Voltando a menina, com os olhos brilhando, não sei se de animação ou de decepção, me pego pensando... Será que ela espera a escola voltar? Acho que não, ela deve esperar a escola começar.  

O que me leva a crer que o que volta não é simplesmente a escola, “o prédio voltar a funcionar”, como eu pensava antes, pelo menos não necessariamente. Talvez, o “voltar” esteja relacionado ao ambiente, e não ao lugar. Um ambiente composto de alunos e professores numa sala de aula. A escola na visão das crianças, ao meu ver e pensar momentâneo, deve ser isso. 

A mãe e a aluna saem. Converso brevemente com minha mãe, sobre a minha sobrinha, que agora mora conosco. Enquanto conversávamos, ouvimos um barulho de criança correndo. Desde o início de março de 2020 que não ouvia esses passos apressados e um tanto trôpegos. 

Olhamos e vemos entrando na escola um aluno conhecido, acompanhado de sua mãe é claro. O nome dele é K. Ele é especial. Um aluno realmente incrível, o primeiro a decorar o alfabeto em sua turma.    

Ele foi um dos meus alunos no ano passado. Eu entrei como estagiário (mediador, pra ser exato) da prefeitura e consegui uma vaga na Oswaldo Aranha, que é uma referência local em educação inclusiva. Pela segunda vez no dia vi uma criança burlar, com toda a pureza, o distanciamento social.  

Depois de mais álcool em gel nas mão, vejo ele correndo com os olhos pelo pátio, com uma luz de inocência. Para a minha surpresa, a pergunta que ele faz é: “Cadê todo mundo?”. 

Onde estão as pessoas que compõem o ambiente escolar? Cadê as “tias”? E os outros alunos? Fico cada vez mais convencido de que realmente a pergunta inicial não se refere ao espaço geográfico, e sim às pessoas. A escola como entidade, personificada apenas quando os alunos e mestres estão juntos. 

K. pouco nota o espaço. As marcas no chão e os cartazes tão atenciosamente observados pela menina transferida são completamente ignorados por ele. Essas mudanças são insignificativas para quem já conhece o lugar. O que é gritante para ele não são as coisas que foram somadas no prédio, como a poeira, ou o tapete esterilizante e muito menos o totem de álcool em gel, antes, é pelo contrário, a ausência.   

A escola está aberta e funcionando (pelo menos a parte administrativa), ela voltou, mas ainda há a ausência, que sussurra sutilmente em alguns momentos, e em outros berra pelos corredores, ecoando no vazio criada e feita de si mesma. 

“Quando a escola volta” implica em voltar a alguma coisa. Há um vazio sintático similar ao dos corredores. Esse vazio pode ser preenchido, por : “Quando a escola volta ao normal?”. Ou então por um verbo: “Quando a escola volta a funcionar?”.  Gosto, contudo, de expressar esse vazio com algum verbo que dê sentido de existência e estado, “Quando a escola volta a ser?”. 


                                           Daniel Andrade

Você pode gostar também

0 comentários