'Carta para Fernando Pessoa', de Maria Roselene Soares Marques
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Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 2022
Querido Pessoa,
Meu nome é Rose e escrevo esta carta por dois motivos, aliás, por três. O primeiro é porque amo escrever cartas. Ora, existe algo mais incrível do que escrever para alguém e ter a impressão de que, ainda que a carta nunca seja enviada e tão pouco lida, a resposta para o que foi escrito um dia virá? Amo realmente escrever cartas! Para mim é a melhor forma de expressar profundas reflexões e inquietantes questionamentos. O segundo motivo é que o poema que escreveras, cujo nome é "Não sei quantas almas tenho", reverberou em mim de tal forma, que os ecos de cada verso soaram como uma orquestra, na qual um instrumento inicia a música, e em seguida entra outro, depois outro e outro, até que todos juntos formam uma só melodia. É um poema com o qual me identifiquei muito e, por isso, gostaria de tecer algumas reflexões sobre ele. E o terceiro motivo é que a Cinda, minha professora de Poesia Portuguesa II, pediu para analisarmos um poema e pensei: já que cedo ou tarde escreverei uma carta para Pessoa falando deste poema, então porque não escrevê-la agora? Dito isso, vamos ao poema.
"Não
sei quantas almas tenho". Ah, Pessoa, que título maravilhoso. Sentir-se
múltiplo em apenas um corpo é transpassar os limites do autoconhecimento. é
entender que o eu de hoje não será o eu de amanhã, assim como o eu de agora não
é o mesmo eu de algumas horas atrás. É como dizes nos primeiros versos do
poema: "Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei". (Pessoa,
1930). E é assim mesmo. Mudamos a todo instante. Triste seria não mudar. Triste
seria ser sempre o mesmo, apesar do tempo passar, das folhas caírem, do sol
nascer, de viver um grande amor, de chorar por algo que não se conseguiu,
enfim... de viver.
Uma
vez a Cinda falou algo muito interessante. Algo que a Luciana, minha professora
de narrativa portuguesa, também já havia falado. Elas disseram que conhecer
significa algo como nascer junto. Ou seja, quando conhecemos algo novo, nasce
uma nova versão nossa junto com o objeto ou o ser conhecido. Que lindo, não é
mesmo? Isso significa então que nascemos e renascemos a cada instante, pois
estamos sempre nos deparando com pessoas e situações novas. Dessa forma,
Pessoa, acho que acabamos mesmo tendo muitas almas. Bom, mas dando sequência ao
poema, acho tão profundo quando refletes:
Continuamente
me estranho.
Nunca
me vi nem achei.
De
tanto ser, só tenho alma.
Quem
tem alma não tem calma.
Quem
vê é só o que vê,
Quem
sente não é quem é,
(Pessoa, 1930)
"De
tanto ser, só tenho alma". Acho isso tão belo! Para mim me parece o ápice
da existência. É ser de tantas formas e de tantas maneiras diferentes, que cada
novo jeito de ser gera uma nova alma, um novo eu, e assim vai acontecendo ao
longo da vida, até a quantidade de almas tornarem-se infinitas. Porém, não sei,
parece que tu não vias isso de uma forma tão positiva, já que defendes que:
"quem tem alma não tem calma". Será que quiseras mesmo passar a
impressão de algo atordoante, de que por conta de ter muitas almas, nunca
conseguirias saber quem eras de verdade. Ou talvez, tenhas dito isso, porque o
fato de ter muitas almas nos coloca frequentemente em uma busca por um eu, pelo
eu primeiro, aquele que gerou todos os outros e, essa busca, é incessante, livre
de qualquer calmaria. Nesse sentido, segues dizendo:
Atento
ao que sou e vejo,
Torno-me
eles e não eu.
Cada
meu sonho ou desejo
É
do que nasce e não meu.
Sou
minha própria paisagem,
Assisto
à minha passagem,
Diverso,
móbil e só,
Não
sei sentir-me onde estou.
"Assisto
a minha passagem". Acho esse verso sensacional! Existe algo tão mais
significativo do que ser agente e paciente do próprio viver? É ocupar posições
distintas enquanto executa apenas uma ação. É mais do que ser o reflexo do eu,
é ver o eu refletido no ser, no ato de viver. É como já dizia Saramago: "É
necessário sair da ilha para ver a ilha" (Saramago, 1997). Segundo o
autor, não nos vemos se não saímos de nós. E conhecer-se, é bem isso mesmo,
olhar para si e para os tantos “eus” que existem dentro de nós.
Por
isso, alheio, vou lendo
Como
páginas, meu ser
O
que segue não prevendo,
O
que passou a esquecer.
Noto
à margem do que li
O
que julguei que senti.
Releio
e digo: «Fui eu?»
Deus
sabe, porque o escreveu.
Essa
última estrofe é perfeita! Somos um livro, no qual cada página é um capítulo de
uma história vivida, pensada ou esquecida. Cada página é um eu diferente, que
conversa com o eu passado e se prepara para o eu futuro. Acho que tantos “eus”
devem surgir para construir, talvez, um eu supremo. É como várias peças de um
quebra-cabeça, que se juntam para formar a mesma imagem. Nessa perspectiva,
todos os “eus” se unem para no final formarem o ser. Será que era por isso que
tinhas tantos heterônimos? Será que cada um deles representava um eu teu
diferente? Acredito que sim. E dar vida às versões de si deve ser algo libertador,
não é? Enfim, ser é algo mágico e viver é a magia que conduz todo o espetáculo.
E é como tu mesmo dizes: "Deus sabe, porque o escreveu".
Antes de finalizar esta carta, sabe o que acabei de pensar, que acabo de ser um dos meus “eus”. Não fui agora a rose aluna universitária que escreve os trabalhos pensando em nota, mas sim a Rose que, de vez em quando, deixa os pensamentos fluírem e registra em algumas linhas um pouco de seus sentimentos mais profundos. Não sei se nessa cartinha escrevi coisa com coisa, mas sei que busquei expressar pelo menos uma parte do que esse poema maravilhoso me fez sentir. O que sei também, é que se eu tiver coragem de enviar essa carta para a Cinda, ela será uma das pessoas que conheceu um dos meus “eus” mais profundos e, isso, sem nunca ter visto a cor dos meus olhos. Que poder tem as palavras, não?
Enfim, é isso. Obrigada pelo poema, Pessoa! Poucas coisas são tão lindas na vida quanto deixar-se ser lido pelos textos.
Rose.
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