POEMA: 'O menino que matou o pai', de André Filho

by - julho 27, 2022

 

Imagem por André Filho

O MENINO QUE MATOU O PAI


Relacionamentos. se constroem com o tempo

sentimentos. com o tempo ficam mais fortes

cabo de guerra, amor e ódio, rompe e morre

slow-motion no tempo, tua vida foi ficar de porre


Garçom, traz mais uma dose de alegria

Brahma no copo! alucinado noite e dia 

diferente de tu, dona Ana foi minha guia

conheci omolú e tu sempre na letargia


Na saúde e na doença? eles não eram casados

espancando seus problemas e mentindo o resultado

“mas sua mãe é foda”

sim, eu sei 

cuidou de dois sozinha enquanto tu sumia outra vez


nunca diga que tu é homem

pois isso, tu não é

porque aquele que é de verdade não agride mulher

nem abandona seus filhos, ou deve pensão

finge estar certo, só pra não pedir perdão

suas mentiras lavadas renunciaram a guarda

mal de toda relação, o afastamento na calada


Distância, com o tempo fica mais longa 

sem mais delongas, meu corpo envelhece

questões tão amplas, minha cabeça nunca esquece

quero sustância(substância) mas fico preso nessa cela

e lembro do tempo que não volta mais

em ultima instancia, o menino matou o pai.



Registro de Confissão, Rio de Janeiro, dia 1 de março de 1999. 22h06 PM.


Gritos, choros e lamentações. Foi tudo aquilo que ouvi naquele dia nebuloso e raro na cidade maravilhosa. A discussão havia se iniciado por volta das seis horas da noite, quando o *** chegara bêbado em casa com mais dois anjos imaginários. Baco e Lúcifer sempre acompanhavam ***** quando este saía. Eram inseparáveis, como siameses metamorfoseados na figura kafkiana. “Cadê a janta” gritou Lúcico para sua serva, enquanto sentava no sofá com o corpo sujo e gosmento. 

A serva de braços fortes e brasileira sem tempo para insetos insignificantes berrou “você acha que tem alguma empregada aqui”.

Silêncio. As vezes, é nele que se consegue prever o que vem depois. Porém, naquele dia estava de fone no quarto ao lado, ouvindo O que Separa os Homens dos Meninos. Vol 1, ainda não havia aprendido a ouvir o silêncio. Única coisa que ouvi foi a frequência sonora do tapa que, por algum milagre — divino talvez não seja — adentrou junto as batidas das rimas e letras, injetando uma dose de adrenalina em mim. Abri a porta do quarto e me deparei com a cena mais triste e impotente da minha vida. A *** deitada no carpete sujo da sala mal-iluminada, enquanto o *** no alto brincava de futebol com o corpo da vítima. 

O corpo costuma adotar posturas estranhas em frente a situações críticas. Procura objetos cortantes e letais em sua volta, mesmo sem conseguir se mover. Como uma tela azul de Windows, você bate e bate e bate na torre, mas a resposta é sempre a tela azul. 

Vi tudo preto e em seguida Lúcico ensanguentado no chão. Só deu tempo de abraçar a serva, minha visão ainda turva foi iluminada pelo clarão das luzes vermelhas e azuis, que refletiam minha camisa branca com manchas cobreadas e meus punhos roxos e dormentes.

Acordei tremendo e gritando, passou-se anos e não os vejo mais. Memórias, afetos, perdões e sentimentos bloqueados. Suor em meu pescoço, corpo frio e febril. A serva senta-me na cama e com sua toalha verde enxuga as lágrimas que meu corpo reproduz, enquanto bebo água e tomo a pílula azul da arrogância humana.


                                                  André Filho

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