CONTO: 'Não Escrevo Sobre Morte', de Heleno Dantas

by - julho 29, 2022

 

Foto por Noélia Albuquerque

Não Escrevo Sobre Morte
    

   Era por volta de uma da tarde, andava entre a movimentação da rua principal, onde o comércio é mais concentrado e sempre tem muita circulação de pessoas, talvez por isso, é, também, o lugar por onde a morte entra.

  As pessoas sempre estavam em alerta, mesmo parecendo alegres e descontraídas. A última vez que a morte veio foi há dois meses e havia deixado muitas marcas.

    Não!

    Não quero escrever sobre morte!

    Talvez por isso caminhe... 

  Desviando dos carros, esbarrando em pessoas, sentindo o cheiro de gordura da hamburgueria do beco, da comida japonesa da esquina, do esgoto a céu aberto da rua de trás, do cigarro de palha, do cigarro de maconha, da comida da pensão da rua ao lado.

   Continuava caminhando e, assim como essa escrita, não sabia para onde estava indo, apenas que algo me chamava e precisava ir.

    Olhava as casas de tijolos umas empilhadas nas outras, os barracos de madeira, as lojas, as barracas. Cumprimentava as pessoas na rua. Fazia carinho em cada gato que via. Brincava com cada cachorro que passava, até os que pareciam, a primeira vista, que iriam morder qualquer um que chegasse perto.

   Escutava o forró, o samba, o funk, o rap, o pagode, o brega, as danças, as lágrimas, os sorrisos, as crianças, os gritos, os latidos, os miados, o trotar dos cavalos, o cantar dos pássaros, as folhas das árvores caindo.

  Caminhava em um ritmo rápido e lento, no tempo e contratempo, no compasso, a passos, da musicalidade desse mundo cinza, verde e muito preto.

   Caminhei até que tudo foi ficando para trás e o ruído musical que berrava aos ouvidos foi se tornando cada vez mais distante...

    Distante... e mais distante...

    E mais ainda... e mais...

    Até que se tornou um silêncio quase absoluto. Só escutava minha respiração e meus pés tocando no chão, que já não era mais asfalto.

   Cheguei no limite do mundo e quase caí naquele imenso abismo.

    Sentei, olhei no horizonte o outro lado, o outro mundo que lá existia. Me perguntei o porquê de existir esse abismo. Sabia que a morte vinha do lado de lá e lá se tinha outro nome, lá ganhava medalhas por roubar a vida de cá.

    Não quero escrever sobre morte.

  Olhei para baixo e reparei naquela escuridão plena e assustadora. Pensei sobre as pessoas que tinha perdido, que a morte tinha me tirado.

    Não quero escrever sobre morte.

    Olhei para cima.

  Caminhei tanto que não reparei que o sol já estava terminando de se pôr. Nunca vi o céu tão lindo, avermelhado pela última brecha de sol no horizonte, a cor se fundia e se transformava em um azul escuro no topo onde estava, surgindo com as estrelas, à lua.

   Era lua cheia e senti que era ela me chamando o tempo todo, para espairecer, esquecer, relembrar, enfim, escrever.

    Contemplando aquela noite bela deixei de me importar com o abismo embaixo dos meus pés, com o mundo do outro lado, com a m... não quero escrever sobre. Só pensava em ficar ali admirando a beleza da noite e da lua.

   Fiquei sentado por horas e quando dei por mim estava muito tarde e resolvi voltar para casa.

  Reparei que no caminho não conseguia escutar mais a musicalidade ou ver o brilho de antes, pensei que já deveria estar muito tarde e a favela adormeceu, afinal, era domingo e amanhã era dia de trabalhar, dia de ir para aquele outro lado, mesmo sem conseguir atravessar o abismo.

    Continuei caminhando. Iria virar na rua principal quando me deparei com ela.

    A morte não veste os trajes que a cultura ocidental lhe deu, na verdade ela até tem certas semelhanças, mas, para quem já a viu de perto, existem diferenças importantes e, naquela noite, eu a vi.

    Tinha roupa preta, mas sem capuz; lâmina, mas sem foice; olhos, mas sem rosto; caveira exposta, isso não mudou.

    Nos encaramos.

    Não senti medo, senti raiva. Sabia o que tinha acontecido e o que iria acontecer comigo simplesmente por ter encarado, mas, mesmo que morresse, não daria o prazer de abaixar a cabeça.

    – Você tem sorte – disse-me

   Havia dezenas, talvez centenas. Carros blindados e um batalhão policial saindo da rua principal e voltando para lá do abismo, naquele mundo do cidadão de bem, em uma marcha de missão cumprida.

   Foi quando reparei: não escrevo sobre morte; escrevo sobre quem a controla.


                                                Heleno Dantas

    

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